Recordações da Ilha Grande – Angra dos Reis

Um pedaço do paraíso

É, sem dúvida, um programa não-atrativo para quem não gosta de paz, contato com a natureza, caminhada por areias e por trilhas, e mergulhos no mar ora verde, ora azul das praias que se sucedem. No entanto, para quem aprecia tudo isso, é uma experiência imperdível.

Pois não é que quatro felizardos (ou loucos) resolveram percorrer toda a extensão da Ilha Grande, na parte voltada para o continente, caminhando quase sessenta quilômetros em pouco mais de três dias, partindo da espetacular Gruta do Acaiá até ao Farol dos Castelhanos?

Ilha Grande

Maravilha mesmo. Bem, nem tudo são flores. Não dá pra ignorar que, nesse trajeto, há várias pequenas subidas para subir e várias pequenas descidas para descer; nada assustador, porém. É verdade, ainda, que nas muitas praias do caminho, as pessoas podem se defrontar, como nós, com diversos pinguins mortos, sendo devorados por urubus famintos. Mas, com certeza, essa mortandade por nós percebida não foi causada pelas águas ou ares da ilha; deve ter sido motivada pelas mudanças climáticas da Terra, ou por causa da poluição, ou por escassez das suas alimentações essenciais, ou pode ter acontecido sem razão específica, simplesmente os ciclos de vida desses animais extinguiram-se, e eles preferiram morrer na ilha para encurtar o tempo de viagem para o paraíso.

Imprevistos podem acontecer, como, por exemplo, ocorreu conosco, os quatro loucos acima mencionados. Por um desencontro de comunicação, a única pousada programada e o jantar encomendado não estavam disponíveis em nossa chegada, ao anoitecer, na Praia de Matariz. Contudo, foi inesquecível ver esse acontecimento aparentemente dramático ter se transformado numa ocorrência insólita: o dono do bar, no qual depois jantaríamos, buscou o responsável pela pousada, e essa pessoa trouxe-nos as chaves de dois quartos, indo depois embora, deixando-nos como únicos hóspedes e, ao mesmo tempo, como guardiões do local, até a manhã do dia seguinte!

Além disso, devido ao excesso de vontade, pequenas loucuras podem ser cometidas, como termos caminhado quatro horas sob chuva, no trajeto Praia de Abraão/Farol dos Castelhanos, metade desse tempo debaixo de um temporal, com chuvas e trovoadas. E, lá chegando, termos invadido o espaço militar, de entrada proibida para estranhos, somente para olhar de perto o bonito farol construído no ano de 1900 e, depois, sermos surpreendidos pelo guarda de plantão, o qual só não nos deu voz de prisão por ter ficado condoído de nosso estado: cansados, encharcados e enlameados. Boníssimo soldado, aliás! Além de não nos prender, ainda ofereceu água para bebermos e liberou-nos em seguida; é verdade que sob o seguinte comentário, murmurado entre os dentes:

– Eu, hein, que sujeitos estranhos! Caminhar várias horas sob um aguaceiro desses, com tantas mulheres boas no pedaço!

Como um dos quatro felizardos, guardei na memória alguns locais visitados e momentos especiais vividos. Permanecem nela a Gruta do Acaiá já citada, com sua fenda de águas luminosas, a Praia de Ubatubinha, que deveria ter seu nome mudado para Praia Bela, a Freguesia de Santana, com uma igreja singela bem antiga e palmeiras imponentes, a Lagoa Verde, com águas dessa cor e transparentes, nas quais peixes rodeiam as pessoas em busca de alimentos gratuitos, mal acostumados por turistas inconsequentes… E, sobretudo, não me esqueço da Praia do Funil.

A Praia do Funil não é linda e é bem pequena, a menor da ilha, com dez metros de comprimento, outros tantos de largura, de margem a margem; nenhum morador vive em seu entorno. Estranhamente, no entanto, adentrando em terra, lá se vê um campo de futebol de tamanho quase oficial, com grama bem aparada, provavelmente para entreter os habitantes adultos dos lugarejos vizinhos e, aproveitando a sua largura, um outro campo bem menor, provavelmente destinado aos guris daquela região.

Olhando essa praia, fiquei conjeturando que ela não deve ter qualquer valor turístico, nem deve ser notada pelos forasteiros navegando apressados. E, divagando tolamente, concluí que as águas que lá chegam devem ser as enjeitadas, águas lentas, empurradas para os cantos pelas mais rápidas, na disputa pela abertura de passagem para prosseguimento de suas viagens. E, como continuação das divagações sem nexo, fiquei imaginando que a chance de uma garrafa com uma mensagem aportar em suas areias deve ser bem menor do que a probabilidade de se ganhar seis vezes consecutivas na loteria da Sena. No entanto, apesar dessa falta de destaque, ela me marcou positivamente, pois foi nela que topei com um lagarto de grande porte, meio gorducho, como se tivesse acabado de comer uma pequena cobra distraída. Foi ali também que avistei um tié-sangue, pássaro raro de se ver, voando de árvore em árvore, livre como devem ser todos os seres, coberto com penas de um vermelho muito vivo, um vermelho quase tão bonito como o da bandeira da pátria onde nasci, um tom mais bonito que a cor da camisa do América, outrora o segundo clube preferido dos torcedores cariocas.

Foi lá nessa praia que, já cansado, depois de cinco horas ininterruptas de caminhada, tirei a mochila das costas e, usando-a como travesseiro, deitei-me para descansar, de barriga pra cima. Então, com os olhos bem abertos fitando o azul-celeste, comecei a sonhar com um graúdo sanduíche de mortadela e um refrigerante bem gelado, ambos materializados uma hora depois, numa vendinha da praia do Saco do Céu.

Manoel Rodrigues, para o Dicas do Timoneiro.

 

Deixe uma resposta

Name and email are required. Your email address will not be published.